segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Paulo Freire: utopia e esperança

Ilusão de ética

Dez anos já se passaram desde que, no final da madrugada de 2 de maio de 1997 (uma sexta-feira, dia chamado de veneris no calendário romano da Antigüidade, em homenagem a Vênus, deusa do Amor...), aconteceu a morte do corpo de Paulo Freire. Dez sem ouvir, de viva voz, o Mestre nos alertando para os riscos da complacência política e da conivência ingênua.

Dez anos sem escutar, dito por ele mesmo, um verbo que preciosamente inventara: “miopisar”. Em Paris, em 1986, ao receber o Prêmio Educação para a Paz da Unesco disse: “De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi, sobretudo, que a paz é fundamental, indispensável, mas que a paz implica lutar por ela. A paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenta miopisar as suas vítimas”.

Miopisar! Deixar míope, dificultar a visão, distorcer o foco. Isso nos lembra a conjuntura atual da República brasileira, na qual muitos daqueles aos quais cabe constitucionalmente a tarefa de proteger a Justiça, a Democracia e a Cidadania, fraturam a honradez e a legitimidade social, impondo, mais do que uma ilusão de ótica, uma ilusão de Ética. É a transformação em “normal” de uma opaca ética do vale-tudo, do uso privado dos recursos públicos, do exercício da autoridade legislativa para tungar benesses particulares, da outorga judiciária para obter a locupletação exclusiva.

É claro que a incúria, a malversação, a prevaricação, a fraude e a negligência são temas cotidianos e recorrentes durante toda a nossa história, mas, não precisam continuar sendo... E, só não o serão mais se não os considerarmos como inevitáveis, naturais ou, até, normais. A novidade, porém, é que, no momento em que há mais divulgação e mecanismos legais de defesa contra tais desmandos e tresvarios, parece que o espaço pedagógico não vem tocando muito nesses temas (que não são nada transversais ou oblíquos e, sim, centrais e primordiais).

Paulo Freire ficaria fraternalmente irado! Irado com o entorpecimento que acomete muitas e muitos de nós que atuamos em Educação; ele com certeza brandiria a Pedagogia da indignação contra a eventual demora em transformar esse contexto nacional eticamente turbulento em um tema-gerador diário de nossa reflexão na comunidade escolar, de modo a favorecermos a rejeição ao fatalismo e à cumplicidade involuntária. É provável, também, que nosso saudoso educador pernambucano nos relembrasse que “a melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível de ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito. Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que hoje não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje também não pude fazer...”.

Primavera do patriarca
Pouco mais de um mês após a morte de Paulo Freire, publiquei uma reflexão sobre ele e a sedução da esperança. Gostaria de celebrar essa lembrança com a retomada de um trecho daquela mesma homenagem, pois penso que se mantém dela a vivacidade.

“Paulo Freire (1921-1997) foi uma pessoa encantadora nas múltiplas acepções que esse adjetivo carrega. Encantava as pessoas (no sentido de enfeitiçá-las) com sua figura miúda (grande por dentro), seu sotaque pernambucano (jamais abandonado) e sua barba bem cuidada (herança profética).”

Seu maior poder de encantar tinha, no entanto, outra fonte: uma inesgotável incapacidade de desistir. De algumas pessoas se diz que são incapazes de fazer o mal, são incapazes de matar uma mosca, são incapazes de ofender alguém; Paulo Freire sofria (felizmente para nós) dessa outra incapacidade: não perdia a esperança.

Cabe perguntar: esperança em que? Na reinvenção do humano, na necessidade de inconformar-se com as coisas no modo como estão. Dizia ele que “uma das condições fundamentais é tornar possível o que parece não ser possível. A gente tem que lutar para tornar possível o que ainda não é possível. Isto faz parte da tarefa histórica de redesenhar e reconstruir o mundo”.

Tarefa histórica era uma expressão muito usada por Paulo Freire; ora, de quem recebera ele essa tarefa? De si mesmo, na sua relação com o mundo real; sua consciência ética apontava sempre como imperativa a obra perene da construção da felicidade coletiva.
Ele encarnou, como poucos, um dos ideais da Grécia clássica que dizia ser a Eudaimonia o objetivo maior da Política (da vida na polis); literalmente eu/bem + daimonia/espírito interior, significaria paz de espírito, mas sua tradução oferece um ótimo trocadilho em português: felicidade e, também, feliz/cidade.

Foi exatamente esse ideal (a política como busca da felicidade de todos e todas) que conduziu Paulo Freire para a educação e, nela, para a prática libertadora.
Muitas vezes, ao se avaliar a importância da obra de Paulo Freire e o impacto que causou na realidade brasileira e internacional, foi comum tachá-lo de um “incompreendido”. Grande engano! Ele foi muito bem compreendido e, por isso mesmo, é amado e admirado por muitos e rejeitado por outros tantos.

Paulo Freire não era (e nem poderia ser) uma unanimidade; fez uma opção pelo enfrentamento político e existencial e, dessa forma, só um resultado anódino de suas idéias e práticas conseguiria situá-lo no altar ascético (e inerme) daqueles que são aceitos por qualquer um. Afinal, mede-se, também, o alcance do que se faz pela qualidade dos adversários que se encontra e das oposições que se manifestam.

O ideal freireano, felizmente, continua robustecido e vivo para as educadoras e educadores que sustentam a força da esperança e recusam-se a admitir a falência da felicidade; esse sim é um ideal perene e amoroso.


Caminhos e escolhas

Em uma manhã de fevereiro de 1992 (lá se vão quinze anos), logo no início do ano letivo, tive a oportunidade de passar algumas prazerosas e encantadoras horas na companhia de Paulo Freire. Fazíamos uma entrevista cuja finalidade era, depois, se transformar em um depoimento, publicado, em 1997, no livro Rememória – Entrevistas sobre o Brasil do século XX 1. Grande aula naquele dia.
Enquanto conversávamos na sala da casa em que vivia com Nita Freire, distraí-me por um minuto ao observar um aparelho de som, sobre um aparador mais ao fundo. Toca-discos ainda era um objeto comum, numa época em que os CDs – agora já rumando para a obsolescência – estavam apenas iniciando sua difusão mais acelerada. Durante a entrevista, como uma deliciosa trilha sonora, havia uma música de Bach rodando em um compact disc. No entanto, minha atenção dirigia-se a alguns antigos discos de vinil alinhados sob o móvel, o mais visível com músicas de Geraldo Vandré.

No mesmo instante, vendo a capa do disco, seja por ser começo de mais um ano docente, seja por estar frente a Paulo Freire, alguém que, aos 71 anos, ensinava há mais de meio século, lembrei-me dos versos iniciais da música O Plantador, de Geraldo Vandré e Hilton Accioly (lançada no disco Canto Geral, em 1968, em plena ditadura política e durante o exílio de Freire no Chile):

“Quanto mais eu ando, mais vejo estrada
Mas se eu não caminho, eu sou é nada.

Se tenho a poeira como companheira, faço da poeira
o meu camarada”. Não é, claro, um caminhar para qualquer lugar e de qualquer modo; não é um caminhar errante e desnorteado. É preciso revigorar amiúde o alerta feito pelo mesmo Paulo Freire, em 1997, na Pedagogia da autonomia (última obra por ele lançada ainda em vida): “Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição.

Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda.”

Viver sinceramente o “quanto mais eu ando, mais vejo estrada, mas se eu não caminho, eu sou é nada”. Viver docentemente.


Especial humildade

Em setembro de 1994, Paulo Freire concedeu uma entrevista à educadora equatoriana Rosa Maria Torres, grande estudiosa e conhecedora da obra do inestimável mestre que, naquele mesmo mês, completava 73 anos. A conversa só foi publicada de fato na Argentina, em maio de 1997, poucos dias após o falecimento de Paulo Freire, mas, em 2001, quando ele faria 80 anos, saiu uma tradução em português no livro Pedagogia dos sonhos possíveis 2 , organizado por sua mulher, a educadora Ana Maria Araújo Freire.

No diálogo, os temas prioritários foram a valorização do trabalho docente, a formação permanente, a necessidade de recuperação salarial, a importância específica de algumas greves do magistério, o perigo dos discursos eleitorais oportunistas, etc. No entanto, o que mais chamou a atenção foi quando, ao falar sobre o papel das greves, disse “Se eu pudesse ter mais influência através dos meus livros, através da minha postura e da minha posição, convidaria o magistério e seus dirigentes a reexaminar as táticas de luta. Não para abandoná-las. Eu seria o último a dizer aos professores ‘Não lutem’. Eu gostaria de morrer deixando uma mensagem de luta.”

Uma década após a entrevista, o mais espantoso nessa frase não é evidentemente o conteúdo que ela carrega; afinal, Paulo Freire sempre deixou claro que as táticas pela labuta contínua na melhoria da educação não excluíam, mas também não se esgotavam, nas paralisações reivindicatórias eventuais. O que suscita surpresa é a humildade verdadeira que manifesta ao relativizar, ele mesmo, com honestidade, o poder de seus escritos e ensinamentos. O mestre levanta dúvidas pessoais sobre o peso da autoridade de suas obras e ações, a ponto de afirmar “se eu pudesse ter mais influência...”.

Vai além. Usa na fala reproduzida antes o verbo no futuro do pretérito: “Eu gostaria de morrer deixando uma mensagem de luta”. Ora, o que mais fez durante toda a existência adulta? Por acaso seria aceitável supor que o conjunto da obra que viveu e publicou tenha deixado em algum instante de ser uma perene e abrasiva mensagem de ânimo combativo e crítica edificante? Esse “eu gostaria” sugere um desejo que nos parece estranho, pois, antes de tudo, o que fez incansavelmente, e assim o honramos, foi impedir que aceitássemos o falecimento da esperança.

Aí está a chave. Embora nos seja óbvia a contribuição que Paulo Freire jamais deixou de oferecer para advertir as nossas conformidades e entusiasmar as nossas intenções, ele próprio não se admitia definitivo, concluído, encerrado. Continuava, com mais de 70 anos, um ser em construção e, desse modo, em aprendizados permanentes e aspirações elevadas.

Há uma ironia etimológica. Seu nome inicial vem do latim paulu que significa “pequeno”; o vocábulo “humildade” por sua vez é oriundo da adjetivação (também latina) humilis, com o sentido de “pouca estatura”, pois tem origem no substantivo húmus (terra ou solo, o que nos está abaixo), mas, da mesma raiz indo-européia para “humano”.

Grande lição. Ser capaz de crescer porque ainda se considerava pequeno.

Mario Sergio Cortella
Filósofo, professor-titular do Departamento de Teologia e Ciências da Religião e da Pós-Graduação em Educação da PUC-SP. Integrou a equipe de Paulo Freire e foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo (1991-1992).

Um comentário:

Danilo professor disse...

Falar de pessoas que lutaram a vida toda,e/ou deram a vida por uma causa, em especial a da libertação de todo e qualquer indivíduo e suas ações sociais bem como da sociedade construida conjunta-mente é falar de seres humanos. Em quanto não entendermos que um Paulo Freire, um Ghandi um Marx, etc e tantos outros de "esquerda" e de "direita" acreditaram em suas lutas e acharam que era o melhor para todos, pagando um preço alto por isso, não intenderemos a sociedade e nem o que ela proibe ou permite que seja feito. Nesse sentido falar (e fazer) educação é uma necessidade no mais amplo sentido de ambas as palavras. Muito luz no caminho e luta de todos, não esquecendo que a escuridão é ausencia de luz, e que se lutarmos, os atomos a nossa volta vão gerar magnetismo e eletricidade e uma luz se fará, as vezes, não para a gente mas para os outros a nossa volta.