sábado, 14 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss


Dêem uma olhada,

Atachado, o livro TRISTES TÓPICOS (1955) , de Claude Lévi-Strauss. Abaixo, artigo da folha vertido do New York Times sobre vida e obra do grande antropólogo francês.

Leia obituário do "New York Times" sobre Claude Lévi-Strauss

EDWARD ROTHSTEIN do New York Times

Claude Lévi-Strauss, o antropólogo francês cujos estudos revolucionários sobre aquele que até então era visto como "homem primitivo" transformaram a compreensão ocidental da natureza da cultura, dos costumes e da civilização, morreu aos cem anos de idade.

Seu filho Laurent disse que Lévi-Strauss morreu de parada cardíaca no fim de semana em sua casa em Paris. Sua morte foi anunciada na terça-feira, no mesmo dia em que ele foi sepultado no vilarejo de Lignerolles, na região da Côte-d'Or, a sudeste de Paris, onde ele tinha uma casa de campo.

"Ele tinha expressado o desejo de ter um funeral discreto e sóbrio, com seus familiares, em sua casa de campo", disse seu filho. "Ele era apegado a este lugar; gostava de fazer caminhadas na floresta, e o cemitério onde foi enterrado fica ao lado dessa floresta."

Pensador marcante e de enorme influência, Lévi-Strauss, com seus estudos das mitologias de tribos primitivas, transformou a maneira como o século 20 passou a compreender a própria civilização. Ele argumentou que as mitologias tribais revelam sistemas lógicos de sutileza notável, exibindo qualidades mentais racionais tão sofisticadas quanto as das sociedades ocidentais.

Lévi-Strauss rejeitava a ideia de que as diferenças entre sociedades não fossem importantes, mas se concentrava nos aspectos comuns das tentativas da humanidade de entender o mundo. Ele se tornou o maior expoente do chamado estruturalismo, uma escola de pensamento segundo a qual "estruturas" universais seriam subjacentes a toda a atividade humana, dando forma a culturas e criações aparentemente díspares.

Seu trabalho exerceu influência profunda até mesmo sobre seus críticos, dos quais houve muitos. Não houve sucessor comparável a ele na França. E seus escritos --que misturam pedantismo e poesia e são repletos de justaposições ousadas, argumentos complexos e metáforas elaboradas-- se assemelham a muito pouco do que veio antes na antropologia.

"As pessoas se dão conta de que ele é um dos grandes heróis intelectuais do século 20", disse em novembro passado Philippe Descola, presidente do departamento de antropologia do Collège de France, em entrevista ao "New York Times" no centenário do nascimento de Lévi-Strauss. Lévi-Strauss era tão reverenciado que a ocasião foi comemorada em pelo menos 25 países.

Descendente de uma família judaica francesa artística e distinta, Lévi-Strauss era um intelectual francês emblemático, tão à vontade na esfera pública quanto no mundo acadêmico. Ele lecionou em universidades de Paris, Nova York e São Paulo e também trabalhou para as Nações Unidas e para o governo francês.

Seu legado é imponente. "Mitológicas", sua obra em quatro volumes sobre a estrutura da mitologia indígena nas Américas, procura fazer nada menos que uma interpretação do mundo da cultura e dos costumes, moldada pela análise de várias centenas de mitos de tribos e tradições pouco conhecidas. Os volumes --"O Cru e o Cozido", "Do Mel às Cinzas", "A Origem dos Modos à Mesa" e "O Homem Nu", publicados entre 1964 e 1971-- desafiam o leitor com seu entremear complexo de temas e detalhes.

Na análise que fazia dos mitos e da cultura, Lévi-Strauss podia contrastar imagens de macacos e onças; analisar as diferenças de significado entre alimentos assados e fervidos em água (os canibais, ele sugeriu, tendiam a ferver seus amigos e assar seus inimigos) e traçar ligações entre histórias mitológicas esdrúxulas e complexas leis de casamento e parentesco.

Muitos de seus livros incluem diagramas que se assemelham a mapas de geometria interestelar, fórmulas que evocam técnicas matemáticas e fotos em preto e branco de rostos escarificados e rituais exóticos, feitas por ele durante seus trabalhos de campo.

"O Pensamento Selvagem"

Suas interpretações de mitos norte e sul-americanos foram fundamentais para transformar a visão ocidental das chamadas sociedades primitivas. Lévi-Strauss começou a desafiar o pensamento convencional a respeito destas pouco depois de iniciar suas pesquisas antropológicas, na década de 1930 --uma experiência que se tornou a base de um livro aclamado lançado em 1955, "Tristes Trópicos", uma espécie de meditação antropológica baseada em suas viagens no Brasil e em outras regiões.

A visão comumente aceita era de que as sociedades primitivas eram intelectualmente pouco imaginativas e temperamentalmente irracionais, baseando suas abordagens à vida e à religião na busca pela satisfação de necessidades urgentes de alimento, roupa e abrigo.

Lévi-Strauss resgatou os objetos de seus estudos dessa visão limitada. Começando com as tribos cadiuéu e bororo de Mato Grosso, onde ele fez seus primeiros e fundamentais trabalhos de campo, Lévi-Strauss identificou entre eles uma busca obstinada não apenas por satisfazer suas necessidades materiais, mas também por compreender origens; uma lógica sofisticada que regia até mesmo os mitos mais bizarros, e um senso implícito de ordem e desígnio, mesmo entre tribos que praticavam a guerra de maneira implacável.

Seu trabalho elevou o status da "mente selvagem", expressão que se tornaria o título inglês ("The Savage Mind") de uma de suas obras mais contundentes, "O Pensamento Selvagem" (1962).

"A sede de conhecimento objetivo", escreveu, "é um dos aspectos mais comumente ignorados do pensamento das pessoas que chamamos de 'primitivas'."

O mundo das tribos primitivas estava desaparecendo rapidamente. Entre 1900 e 1950, mais de 90 tribos e 15 línguas tinham deixado de existir, apenas no Brasil. Esse era outro dos temas recorrentes de Lévi-Strauss. Ele receava o crescimento de uma "civilização massificada", de uma "monocultura" moderna. Às vezes expressava uma repulsa irritada pelo Ocidente e "sua própria imundície, atirada no rosto da humanidade".

Nessa aparente exaltação da mente selvagem e denigrescimento da modernidade ocidental, Lévi-Strauss escrevia dentro da tradição do romantismo francês, inspirado pelo filósofo setecentista Jean-Jacques Rousseau, a quem reverenciava. Foi uma visão que ajudou a moldar sua reputação pública na era do romantismo contracultural dos anos 1960 e 1970.

Mas esse romantismo simplificado, além do relativismo cultural que ganhou forma nas décadas seguintes, também era uma distorção de suas ideias. Para Lévi-Strauss, o selvagem não é intrisecamente nobre ou de qualquer maneira "mais próximo da natureza". Lévi-Strauss se mostrou devastador, por exemplo, em suas descrições dos cadiuéus, que retratou como uma tribo que se rebelava contra a natureza --e, portanto, estava condenada-- a tal ponto que evitava a procriação, optando por "reproduzir-se" por meio do sequestro de crianças de tribos inimigas.

Suas descrições de tribos indígenas das Américas do Norte e do Sul guardam pouca relação com os clichês sentimentais e bucólicos que se tornaram comuns. Lévi-Strauss também traçava distinções nítidas entre o primitivo e o moderno, focando no desenvolvimento da escrita e da consciência histórica.

Foi uma consciência da história, a seu ver, que teria permitido o desenvolvimento da ciência e a evolução e expansão do Ocidente. Mas ele temia pelo destino do Ocidente, que, segundo escreveu no "New York Review of Books", estava "se permitindo esquecer ou destruir seu próprio legado". Ele também sugeriu que, com a perda da potência do mito no Ocidente moderno, a música teria assumido a função do mito. A música, argumentou, com seu poder narrativo primal, possui a capacidade de sugerir as forças e ideias conflitantes que estão nos fundamentos da sociedade.

Mas Lévi-Strauss rejeitou a ideia de Rousseau de que os problemas da humanidade decorrem das distorções humanas da natureza. Na visão dele, não existe alternativa a essas distorções. Cada sociedade precisa se criar a partir da matéria-prima da natureza, ele pensava, tendo a lei e a razão como suas ferramentas essenciais. Essa aplicação da razão, ele argumentava, cria estruturas universais que são encontradas em todas as culturas e todos os tempos.

Lévi-Strauss se tornou conhecido como estruturalista devido a sua convicção de que existe uma unidade estrutural subjacente a toda a criação humana de mitos, e ele demonstrou como esses motivos universais se expressam nas sociedades, até mesmo no desenho espacial de uma aldeia.

Para Lévi-Strauss, a mitologia de todas as culturas é erguida em torno de oposições: quente e frio, cru e cozido, animal e humano. E é por meio desses conceitos opostos, "binários", disse ele, que a humanidade interpreta o mundo.

Era tudo muito diferente das questões que até então preocupavam a maioria dos antropólogos. A antropologia até então havia tradicionalmente buscado trazer à tona as diferenças entre culturas, e não descobrir suas estruturas universais. Ela se preocupara não com ideias abstratas, mas com as particularidades de rituais e costumes, com sua coleta e catalogação.

A abordagem "estrutural" de Lévi-Strauss, buscando elementos universais da mente humana, chocou-se com aquela visão da antropologia. Lévi-Strauss não procurou determinar as diversas finalidades das práticas e dos rituais de uma sociedade. Jamais se interessou pelo tipo de trabalho de campo empreendido por antropólogos de uma geração posterior, como Clifford Geertz, que observaram e analisaram sociedades como que de seu interior. (Ele iniciou "Tristes Trópicos" com a declaração "odeio viajar e odeio exploradores".)

Ideias que agitaram seu campo

Como ele escreveu em "O Cru e o Cozido" (1964), Lévi-Strauss considerou que tinha levado "a pesquisa etnográfica na direção da psicologia, da lógica e da filosofia".

Em palestras dadas pela rádio à Canadian Broadcasting Corporation em 1977 (publicadas como "Myth and Meaning", Mito e Significado), Lévi-Strauss demonstrou como poderia ser feita uma análise estrutural de um mito. Ele citou um relato segundo o qual no século 17, no Peru, quando fazia fria intenso, um sacerdote convocava todos os que tinham nascido pelos pés primeiro, que tivessem lábio leporino ou fossem gêmeos. Essas pessoas então eram acusadas de serem responsáveis pelo tempo frio e eram ordenadas a fazer penitência. Mas por que esses grupos? Por que gêmeos e pessoas com lábio leporino?

Lévi-Strauss citou uma série de mitos norte-americanos que associam gêmeos a forças naturais opostas: ameaça e esperança para o futuro, perigo e expectativa. Um mito, por exemplo, inclui uma lebre mágica, um coelho, cujo focinho é rachado em uma briga, resultando literalmente em um lábio leporino, o que sugere uma condição gêmea incipiente. Com suas injunções, o sacerdote peruano parecia ter consciência de associações entre desordem cósmica e o poder latente dos gêmeos.

As ideias de Lévi-Strauss abalaram o campo da antropologia. Mas seus críticos foram muitos. Eles o atacaram por ignorar a história e a geografia, empregando mitos de um lugar e tempo para ajudar a lançar luz sobre mitos de outro, sem demonstrar qualquer conexão ou influência direta.

Em uma influente análise crítica da obra de Lévi-Strauss escrita em 1970, o antropólogo da Universidade Cambridge Edmund Leach escreveu: "Mesmo hoje, apesar de seu prestígio imenso, os críticos entre seus colegas de profissão superam muito em número os discípulos".

O próprio Leach duvidava de que Lévi-Strauss, durante seus trabalhos de campo no Brasil, pudesse ter conversado com "qualquer um de seus informantes indígenas em sua língua nativa" ou permanecido por tempo suficiente para confirmar suas primeiras impressões. Alguns dos argumentos teóricos de Lévi-Strauss, incluindo suas explicações sobre os canibais e seus gostos, foram contestados por pesquisas empíricas.

Lévi-Strauss reconheceu que sua força estava nas interpretações que fez do que descobriu. Ele pensava que seus críticos não tinham dado crédito suficiente ao impacto cumulativo dessas especulações. "Por que não admiti-lo?", disse certa vez a um entrevistador, Didier Eribon, em "De Perto e de Longe". "Não levei muito tempo a descobrir que eu era um homem feito mais para os estudos que para o trabalho em campo."

Claude Lévi-Strauss nasceu em 28 de novembro de 1908, em Bruxelas, filho de Raymond Lévi-Strauss e de Emma Levy, que estavam vivendo na Bélgica na época. Ele cresceu na França, perto de Versalhes, onde seu avô era rabino e seu pai, pintor retratista. Seu bisavô Isaac Strauss foi um violonista em Estrasburgo que foi mencionado por Berlioz em suas memórias. Quando criança, Lévi-Strauss gostava de colecionar objetos de toda espécie e os justapor. "Eu tinha paixão por curiosidades exóticas", disse em "De Perto e de Longe". "Minhas pequenas economias iam todas parar em lojas de artigos de segunda mão." Um conjunto de antiguidades da coleção de sua família, ele contou, foi exposto no Museu de Cluny, em Paris; outros objetos da coleção foram roubados depois de a França ser dominada pelos nazistas, em 1940. Entre 1927 e 1932, Lévi-Strauss se graduou em direito e filosofia na Universidade de Paris, depois lecionou em um colégio de segundo grau local, o Liceu Janson de Sailly, onde seus colegas professores incluíram Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Mais tarde ele se tornou professor de sociologia na Universidade de São Paulo, de influência francesa.

Gosto pela aventura

Decidido a tornar-se antropólogo, ele começou a fazer viagens pelo interior do Brasil, acompanhado por Diana Dreyfus, com que se casou em 1932. "Eu procurava uma maneira de conciliar minha formação profissional com meu gosto pela aventura", disse ele em "De Perto e de Longe", acrescentando: "Senti que estava revivendo as aventuras dos primeiros exploradores do século 16".

Seu casamento com Dreyfus terminou em divórcio, assim como um casamento subsequente, em 1946, com Rose-Marie Ullmo, com quem teve seu filho Laurent. Em 1954 Lévi-Strauss se casou com Monique Roman, e também eles tiveram um filho, Matthieu. Além de Laurent, Lévi-Strauss deixa sua esposa, Matthieu e os dois filhos de Matthieu.

Lévi-Strauss deixou de lecionar em 1937 para dedicar-se a trabalhos de campo, retornando à França em 1939 para levar seus estudos adiante. Mas, na véspera da Segunda Guerra Mundial, foi convocado pelo Exército francês para atuar como contato com as tropas britânicas. Em "Tristes Trópicos", ele descreve sua "retirada desordenada" da Linha Maginot depois da invasão da França por Hitler, fugindo em caminhões de gado e dormindo em "currais de ovelhas".

Em 1941 Lévi-Strauss foi convidado para ser professor visitante na Nova Escola de Pesquisas Sociais, em Nova York, com ajuda da Fundação Rockefeller. Ele descreveu esse período como "o mais frutífero de minha vida". Passava tempo na sala de leitura da Biblioteca Pública de Nova York e tornou-se amigo do respeitado antropólogo americano, mas nascido na Alemanha, Franz Boas e do linguista (e estruturalista) nascido na Rússia Roman Jakobson.

Ele também passou a integrar um círculo de artistas e surrealistas que incluía Max Ernst, André Breton e Dolorès Vanetti, futura amante de Jean-Paul Sartre. Vanetti, disse Lévi-Strauss em "Conversations", compartilhava sua "paixão por objetos", e os dois faziam visitas regulares a uma loja de antiguidades de Manhattan que vendia artefatos do Noroeste Pacífico. Essas excursões deixaram Lévi-Strauss com "a impressão de que tudo o que há de essencial nos tesouros artísticos da humanidade podia ser encontrado em Nova York".

Após a guerra, Lévi-Strauss estava tão determinado a levar adiante seus estudos em Nova York que recebeu do governo francês o cargo de adido cultural, que exerceu até 1947. Retornando à França, recebeu um doutorado em letras da Universidade de Paris em 1948 e foi curador associado do Museu do Homem, em Paris, em 1948 e 1949. Seu primeiro grande livro, "As Estruturas Elementares do Parentesco", foi publicado em 1949. (Alguns anos mais tarde, o júri do Prêmio Goncourt, o mais famoso prêmio literário da França, disse que teria dado o prêmio a "Tristes Trópicos", seu híbrido de livro de memórias e relato de viagens antropológico, se tivesse sido ficção.)

Depois de a Fundação Rockefeller ter feito uma doação à École Pratique des Hautes Études, em Paris, para a criação de um departamento de estudos sociais e econômicos, Lévi-Strauss tornou-se o diretor de estudos da escola, cargo no qual permaneceu de 1950 a 1974.

Seguiram-se outros cargos. Entre 1953 e 1960, Lévi-Strauss foi secretário-geral do Conselho Internacional de Ciência Social da Unesco. Em 1959 ele foi nomeado professor do Collège de France. Foi eleito para a Academia Francesa em 1973. Em 1960 Lévi-Strauss já tinha fundado o "L'Homme", periódico que seguiu o modelo da "The American Anthropologist".

Nos anos 1980 o estruturalismo, conforme visualizado por Lévi-Strauss, deu lugar aos pensadores franceses que se tornaram conhecidos como pós-estruturalistas: escritores como Michel Foucault, Roland Barthes e Jacques Derrida. Eles rejeitavam a ideia das estruturas universais atemporais e argumentavam que história e experiência eram muito mais importantes que leis universais na formação da consciência humana.

"A sociedade francesa, e a parisiense em especial, é voraz", respondeu Lévi-Strauss. "A cada cinco anos, mais ou menos, sente a necessidade de encher sua boca com algo novo. Assim, cinco anos atrás era o estruturalismo, e agora é outra coisa. Praticamente não ouso mais usar a palavra 'estruturalista', tão gravemente ela foi deformada. Eu certamente não sou o pai do estruturalismo."

Mas é possível que a versão de estruturalismo proposta por Lévi-Strauss acabe sobrevivendo ao pós-estruturalismo, assim como Lévi-Strauss sobreviveu à maioria de seus expoentes. Sua obra monumental "Mitológicas" pode até assegurar seu legado, se não como explicador das mitologias, como seu criador.

O volume final de "Mitológicas" termina com a sugestão de que a lógica da mitologia é tão poderosa que os mitos quase têm uma vida independente dos povos que os contam. Na visão de Lévi-Strauss, os mitos falam através da humanidade, e, por sua vez, se tornam as ferramentas com as quais a humanidade se concilia com o maior mistério do mundo: a possibilidade de não ser, o fardo da mortalidade.

Colaborou Nadim Audi, de Paris

Tradução de Clara Allain

Este texto foi publicado originalmente no jornal "The New York Times"

Bons pensamentos

Indicado por:

Danilo Melo


caros amigos, segue um artigo que penso ser bacana,

sombra do medo em flor
Escrito por Fausto Wolff
Seg, 08 de Setembro de 2008 02:00
Dêem a chefia da portaria ao mais dócil empregado e logo ele se tornará um tirano

Já escrevi em algum lugar que, enquanto não nos revoltarmos contra o conceito de democracia que considera sagrado o direito de uma minoria escravizar o resto, jamais chegaremos à condição de seres humanos. Seremos sempre caricaturas, títeres perdidos na ventania, sempre com cara de “desculpe, não era bem isso que eu queria dizer”.

Enquanto não se der a revolução da humanidade contra a tirania, enquanto deixarmos que nos humilhem para que possamos continuar vivendo, teremos de suportar algumas imperfeições, certos espinhos colocados em nossos sapatos ainda na infância que não podemos ou não queremos tirar.

Uma dessas imperfeições é a constatação de que, à medida que envelhecemos, vamos nos tornando mais medrosos. Quando deveria acontecer o contrário: à medida que envelhece, o homem deveria tornar-se mais corajoso, porque mais sábio, mais justo, mais conhecedor dos seus deveres e direitos.

Quando eu tinha pouco mais de 20 anos, todos os dentes e era um sujeito bonito, era também dado a papagaiadas. Certa vez, ainda noivo (havia noivados e até virgens naquela época), estava no falecido Bar Castelinho, tomando um chope com minha futura mulher, quando um dos donos de uma revista para a qual eu escrevia sentou-se à nossa mesa e se comportou de forma grosseira.

Gentilmente, mandei que se retirasse, pois já tinha de aturá-lo o dia inteiro e não pretendia fazer isso quando estava namorando. Fui despedido no dia seguinte. Na hora, a sensação foi boa, mas eu era muito jovem para perceber que os rateios estavam contra mim.

Outra imperfeição: ser burro, viver e conhecer o mínimo do seu potencial energético interior e, além disso, ter de suportar a consciência da sua mortalidade. Algumas pessoas percebem isso, mas, como são ignorantes, aceitam o princípio nada otimista de que a vida é um absurdo porque acaba na morte e, como dizia Camus, o homem vive e não é feliz. Essa constatação é tão angustiante que, sem uma garrafa ao alcance da mão, é difícil resistir à tentação de não dar um tiro na têmpora.

Hoje em dia, em pleno século 21, a grande maioria de escravos aceita essa condição fingindo não saber dela, fingindo que a vida é assim mesmo. Uns entram com o pé e os outros com o popô, uns com o pescoço e os outros com a foice. Excetuando os psicopatas que, aparentemente, já nascem tortos, alguns poucos escravos se rebelam e saem fazendo bobagens: roubando, assaltando, matando, estuprando.

Quando isso acontece, todos ficam com cara de tacho, fingindo que não têm nada a ver com o peixe. Em seguida, os políticos pedem “responsabilidade criminal aos 16 anos”. Logo, pedirão responsabilidade aos 15, 14 e cosi via. Cosi via significa que aumentará o número de crianças assassinadas ao nascer; aceitação literal da loucura religiosa de que o homem já nasce pecador. Claro que essa lei só valerá para crianças pobres.

Sou contra a pena de morte, mas, como a tragédia, mesmo quando coletiva, é sempre individual, o que eu faria se matassem alguém indispensável à minha vida? E se alguém tirasse a vida de uma pessoa e, ao fazer isso, me deixasse aleijado interiormente pelos anos que me restam?

Como não acredito na Justiça e também não acredito que podemos julgar oficialmente os efeitos sem punir as causas, eu simplesmente mataria o assassino. E o faria pessoalmente, com as minhas mãos.

Em seguida, cidadão exemplar que sou, me entregaria ao juiz. Não teria resolvido nada, mas como sou humano em estágio ainda bárbaro, pelo menos isso atenuaria um pouco a minha dor.

Como vejo a coisa hoje? Dêem a chefia da portaria de um edifício ao mais dócil dos empregados e logo ele se tornará um tirano para agradar ao poder imediatamente acima dele.

O poder ama a si mesmo e aos poderosos. É tão implacável na sua injustiça que consegue convencer mais de 100 milhões de brasileiros adultos de que devem escolher entre o algoz da esquerda e o da direita. E nada acontece.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

MST e laranjas 9 de outubro de 2009

Por Maurício Caleiro*

O MST é detestado por todos: da direita ruralista à esquerda chavista, passando por tucanos, petistas, psolentos, verdes, azuis e amarelos. Mesmo os que fingem apoiar o MST o detestam.
Isso porque há uma antipatia ancestral e inata contra o MST, esse arquétipo de nosso inconsciente coletivo, esse cancro irremovível que insiste em nos lembrar, mesmo nos períodos de bonança, que fomos o último país do mundo a abolir a escravidão e continuamos sendo uma porcaria de nação que jamais fez a reforma agrária.
O MST é o espelho que reflete o que não queremos ver.
Há duas questões, na vida nacional, que contradizem qualquer discurso político da boca pra fora e revelam qual é, mesmo, de verdade, a tendência ideologica de cada um de nós, brasileiros: a violência urbana e o MST. Diante deles, aqueles que até ontem pareciam ser os mais democráticos e politicamente esclarecidos passam a defender que se toque fogo nas favelas, que se mate de vez esse bando de baderneiros do campo, porra, carajo, mierda malditos direitos humanos!
O MST nos faz atentar para o fato de que em cada um de nós há um Esteban de A Casa dos Espíritos; há o ditador, cuja existência atravessa os séculos, de que nos fala Gabriel García Márquez em O Outono do Patriarca; há os traços irremovíveis de nossa patriarcalidade latinoamericana, que indistingue sexo, raça, faixa etária ou classe social:
O MST é o negro amarrado no tronco, que chicoteamos com prazer e volúpia.
O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI.
O MST é a Geni da música do Chico Buarque - boa pra apanhar, feita pra cuspir ? com a diferença de que, para frustração de nossa maledicência, jamais se deita com o comandante do zeppelin gigante.
E, acima de tudo, O MST é um assassino de laranjas!
E ainda que as laranjas fossem transgênicas, corporativas, grilheiras, estivessem podres, com fungos, corrimento, caspa e mau hálito, eles têm de pagar pela chacina cítrica! Chega de impunidade! Como o João Dória Jr., cansei!


Jornalismo pungente
Afinal, foi tudo registrado em imagens ? e imagens, como sabemos, não mentem. Estas, por sua vez, foram exibidas numa reportagem pungente do Jornal Nacional - mais um grande momento da mídia brasileira -, merecedora, no mínimo, do prêmio Pulitzer. Categoria: manipulação jornalística. Fátima Bernardes fez aquela cara de dominatrix indignada; seu marido soergueu uma das sobrancelhas por sob a mecha branca e, além dos litros de secreção vaginal a inundar calcinhas em pleno sofá da sala, o gesto trouxe à tona a verdade inextricável: os ?agentes? do MST são um bando de bárbaros.
(Para quem não viu a reportagem, informo,a bem da verdade, que ela cumpriu à risca as regras do bom jornalismo: após uns dez minutos de imagens e depoimentos acusando o MST, Fátima leu, com cara de quem comeu jiló com banana verde, uma nota de 10 segundos do MST. Isso se chama, em globalês, ouvir o outro lado.)
Desde então, setores da própria esquerda cobram do MST sensatez, inteligência, que não dirija seu exército nuclear assassino contra os pobres pés de laranja indefesos justo agora, que os ruralistas tentam instalar, pela 3ª vez, como se as leis fossem uma questão de tanto bate até que fura, uma CPI contra o movimento (afinal, é preciso investigar porque o governo ?dá? R$155 milhões a ?entidades ligadas ao MST?, mesmo que ninguém nunca venha a público esclarecer como obteve tal informação, como chegou a esse número, que entidades são essas nem qual o grau de sua ligação com o MST: O Incra, por exemplo, está nessa lista como ligado ao MST?).


A insensatez dos miseráveis
Ora, o MST é um movimento social nascido da miséria, da necessidade e do desespero. Eles estão em plena luta contra uma estrutura agrária arcaica e concentradora. Não se pode esperar sensatez de movimentos sociais da base da pirâmide social, que lutam por um direito básico do ser humano. Pelo contrário: é justamente a insensatez, a ousadia, a coragem de desafiar convenções que faz do MST um dos únicos movimentos sociais de fato transgressores na história brasileira. Pois quem só protesta de acordo com os termos determinados pelo Poder não está protestando de fato, mas sendo manipulado. Se os perigosos agentes vermelhos do MST tivessem sensatez, vestiriam um terno e iriam para o Congresso fazer conchavos, não ficariam duelando com moinhos de vento, digo, pés de laranja.
Mas é justamente por isso que o MST incomoda a tantos: ele, ao contrário de nós, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde de nossa sociedade que transgride o tabu e destroi o totem. Portanto, para restituição da ordem capitalista/patriarcal e para aplacar nossa inveja reprimida, ele tem de ser punido. Ele é o outro.Quantos de nós já se perguntaram como é viver sob lonas e gravetos, à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos dos tanto que os detestam? Quantos já permaneceram num acampamento do MST por mais do que um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida?
Poucos, muito poucos, não é mesmo? Até porque nem a sobrancelha erótica do Bonner nem o olhar-chicote da Fátima jamais se interessaram pelo desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, nem pelas crianças de 3,4 anos que amanhecem coberta de hematomas dos chutes desferidos pelos jagunços invasores, ao lado do corpo de seus pais, assassinados covardemente pelas costas e cujo sangue avermelha o rio.
Para estes, resta, desde sempre, a mesma cova ancestral, com palmos medidas, como a parte que lhes cabe neste latifúndio.
Para a mídia, pés de laranja valem mais do que a vida humana, quero dizer, a vida subumana de um miserável que cometeu a ousadia suprema de lutar para reverter sua situação.
Mas os bárbaros, claro está, são o MST.
Por isso, haja o que houver, o MST é o culpado.


* Maurício Caleiro é jornalista e cineasta