"O fascismo israelense está vivo e esperneia. Cresce no  mesmo canteiro que já gerou vários grupos religiosos-nacionalistas  clandestinos: o grupo que tentou explodir os locais sagrados para os muçulmanos,  no Monte do Templo; os que tentaram assassinar prefeitos palestinos, a gang  “Kach”; os autores do massacre em Hebron; Baruch Goldstein, assassino do  ativista pela paz Emil Gruenzweig; o assassino de Yitzhak Rabin; e todos os  grupos clandestinos que foram descobertos em estágio inicial de organização,  antes de chegarem ao conhecimento público".
"O sistema de justiça interno  do Exército de Israel é monstruoso: não se pode dizer menos. O comandante que  deteve uma mulher palestina em trabalho de parto e com sangramento, num posto de  fronteira, causando a morte do bebê, recebeu, como pena, duas semanas de  detenção. O comandante que ordenou que um soldado atirasse na perna de um  palestino algemado foi “transferido” – o que significa que esse criminoso de  guerra pode continuar servindo em outra unidade do Exército".
O fascismo?  Pode, sim, acontecer em Israel.*
Uri Avnery
O SOBRENOME ALEMÃO  Sternhell significa “brilhante como as estrelas”. É nome adequado: as posições  do Professor Ze'ev Sternhell destacam-se, brilhantes, contra a escuridão do céu.  Sempre denunciou o fascismo israelense. Essa semana, os fascistas israelenses  jogaram uma bomba de fabricação caseira (um cano selado, com pregos e  explosivos) na entrada de seu apartamento, e ele sofreu ferimentos  leves.
À primeira vista, a escolha da vítima parece estranha. Mas os  autores do atentado sabiam o que faziam.
Não atacaram os ativistas que,  todas as semanas, fazem manifestações contra o Muro da Separação em Bilin e  Naalin. Não atacaram os grupos de esquerda que, ano após ano – e em 2008 também  – mobilizam-se para ajudar os palestinenses a colher suas azeitonas nos pontos  mais perigosos, nas vilas mais próximas das colônias israelenses. Não atacaram  as “Mulheres de preto” que se reúnem todas as 6ªs-feiras, nem as mulheres do  movimento “Machsom Watch” que vigiam os postos de controle, para registrar e  denunciar as violências praticadas por soldados israelenses. Atacaram alguém que  só faz trabalho intelectual.
As lutas de campo são essenciais. Mas elas  só visam influenciar a opinião pública. A principal batalha é a batalha de  idéias. E é aí que os intelectuais têm papel tão importante a  desempenhar.
No plano das idéias, há duas visões em confronto, em Israel,  dois modos de ver, tão distantes um do outro quanto o Oriente é distante do  Ocidente. Por um lado, há uma Israel culta, moderna, secular, liberal e  democrática, que vive em paz e em parceria com a Palestina, vendo-a como parte  integrante e integral da Região. Por outro lado, há uma Israel fanática,  religiosa, fascista, que se auto-exclui, tanto quanto se auto-exclui da  humanidade civilizada, gente que “duela sozinha e não será reconhecida entre as  nações” (Números, 23:9), onde a “espada devorará para sempre” (2, Samuel  2:26).
Ze'ev Sternhell é um dos guias mais brilhantes da visão mais  iluminada, mais lúcida. Suas posições brilham como estrelas, resolutas e  incisivas. Não surpreende que tenha sido escolhido como alvo para os  neo-nazistas que há em Israel e suas bombas neo-nazistas.
Sternhell é  intelectual especialista nas origens do fascismo, um tema ao qual também me  dedico, ao longo de toda a minha vida. Ele e eu somos movidos por interesses  semelhantes: o nazismo deixou marca indelével na nossa infância e no nosso  destino. Criança, testemunhei o nascimento do nazismo na Alemanha. Criança,  Sternhell viu o nazismo nascer na Polônia, quando, depois da morte do pai,  perdeu a mãe e a irmã no Holocausto.
“Quem conhece água fervente, tem  medo até de água fria”, diz um velho provérbio judeu. Quem tenha conhecido o  fascismo atacar a própria vida, na infância, é e para sempre será  excepcionalmente sensível ao primeiro sintoma de recaída da mesma doença. Em  1961 escrevi um livro com o título de “A suástica” (que só existe em hebraico),  no qual tentei decifrar o código das raízes do nazismo. Ao final do livro,  pergunto: “Poderá acontecer em Israel?” Minha resposta bem clara: Sim, pode.  Pode acontecer em Israel.
Sou sensível a qualquer sinal daquela doença na  nossa sociedade israelense atual. Como jornalista e editor de uma revista, usei  minha lanterna para iluminar melhor cada sinal que vi ou pressenti. Como  ativista político, combato-os todos os dias, seja no Parlamento seja nas  ruas.
Sternhell, por sua vez, depois de uma carreira militar, passou a  dedicar-se integralmente à vida acadêmica. E usa os instrumentos da academia:  pesquisa, aulas e publicações. Luta para encontrar as melhores definições, as  mais precisas, sem buscar popularidade e fugindo às provocações. Em um de seus  artigos, há anos, escreveu que a resposta violenta dos palestinenses contra a  ocupação é resposta esperável, natural. Por isso, atraiu sobre si a eterna ira  dos moradores das colônias e da extrema direita, que trabalharam muito para  impedir que Sternhell recebesse o “Prêmio Israel” – a mais importante láurea que  há entre nós.
Agora, recorreram às bombas de fabricação  caseira.
QUEM PÔS lá aquela bomba? Um único indivíduo? Um grupo? Algum  novo grupo clandestino? Os terroristas das colônias? Cabe à Polícia e ao  Shin-Bet descobrir.
Do ponto de vista do público, o assunto é mais  simples: vê-se facilmente em que canteiro florescem essas sementes daninhas, que  ideologia lhes serve de adubo, e quem as semeia por aí.
O fascismo  israelense está vivo e esperneia. Cresce no mesmo canteiro que já gerou vários  grupos religiosos-nacionalistas clandestinos: o grupo que tentou explodir  os locais sagrados para os muçulmanos, no Monte do Templo; os que tentaram  assassinar prefeitos palestinenses, a gang “Kach”; os autores do massacre em  Hebron; Baruch Goldstein, assassino do ativista pela paz Emil Gruenzweig; o  assassino de Yitzhak Rabin; e todos os grupos clandestinos que foram descobertos  em estágio inicial de organização, antes de chegarem ao conhecimento  público.
São ações que não podem ser atribuídas a indivíduos ou a rogue  groups, a rebeldes ou a “grupos do mal”. Há, bem evidente, uma franja fascista  na sociedade política em Israel. Em termos ideológicos, são nacionalistas  religiosos; têm líderes espirituais, “rabinos” que formulam essa específica  visão de mundo e seu respectivo modo de agir. Esses judeus não trabalham em  segredo. Ao contrário, oferecem seus serviços na feira, no mercado.
O  setor está concentrado nas colônias ‘ideologizadas’. Não significa que  todos os colonos judeus sejam fascistas. Mas quase todos os fascistas são  colonos judeus. Concentram-se em colônias bem conhecidas. Por acaso ou não por  acaso, todas essas colônias ideologizadas estão situadas no coração da  Cisjordânia, nas cercanias do Muro de Separação. A primeira delas, na área de  Hebron, foi instalada pelo líder ‘esquerdista’ Yigal Allon; outra, próxima de  Náblus, pelo líder ‘esquerdista’ Shimon Peres.
DURANTE os últimos meses,  aumentou muitíssimo o número de incidentes nos quais colonos atacam soldados,  policiais e ‘esquerdistas’ palestinenses.
São atos cometidos abertamente,  para aterrorizar e intimidar. Colonos vandalizam as vilas palestinas cujas  terras cobiçam ou invadem; ou agem por vingança.
São pogroms no sentido  clássico da palavra: atos de vandalismo, executados por grupos armados,  intoxicados de ódio contra população civil desarmada; e o exército e a polícia  apenas observam. Os Pogromchiks destroem, ferem e matam. Nos últimos tempos, tem  acontecido cada vez mais freqüentemente.
Nos raros casos em que o  exército ou a polícia intervêm, não tomam conhecimento da ação dos colonos;  atacam os ativistas israelenses dos grupos pró-paz que acorrem para ajudar os  agricultores palestinenses agredidos. O porta-voz dos serviços de segurança de  Israel e os comentaristas que ainda tentam aparentar alguma isenção falam de  “agitadores da Esquerda e da Direita”. Nada mais falso que essa aparente isenção  – a qual, ela também, é parte do arsenal de truques que os fascistas sempre  usaram.
Os pogroms organizados pelos colonos judeus são violentos por sua  própria natureza, tanto na intenção quanto na ação; e os ativistas do campo da  paz são não-violentos por princípio. Sempre que há violência, começa nos  movimentos do exército e da polícia de fronteira, sob o pretexto de que, antes,  foram agredidos por meninos locais que lhes atiraram pedras. O que ninguém diz é  que soldados e policiais de fronteira, super-armados e super-blindados,  perseguem os manifestantes pelas ruas e vielas das cidades.
A violência e  a agressividade dos musculosos militantes da extrema direita – “ativistas da  Direita”, como a mídia insiste em dizer, com cortesia máxima – estão aumentando  dia a dia. Fazem o que querem, quando querem, porque sabem perfeitamente que  nada e ninguém os punirá. Sabem que a polícia mantém-se distante e não  interfere; e sabem também que, ainda que a polícia interfira, os tribunais não  os condenarão a qualquer tipo de pena mais severa.
TODOS que conheçam a  história do nazismo conhecem bem o vergonhoso papel que tiveram os tribunais e  demais agentes da lei, na República de Weimar, em relação aos criminosos cujo  único objetivo era atacar o próprio sistema democrático. Os agitadores nazistas  recebiam penas leves, porque os juízes os declaravam “patriotas equivocados”; e  os agitadores comunistas eram tratados como agentes e espiões  estrangeiros.
Atualmente, Israel está vivendo o mesmo fenômeno. Os  colonos israelenses que infringem a lei recebem condenações simbólicas; os  palestinos, mesmo quando acusados por infrações muito mais leves, recebem penas  duríssimas. Hoje, um colono que atice seus cães contra um comandante de batalhão  é absolvido; exatamente como acontece, também, mesmo que ele quebre os ossos de  um chefe de destacamento.
O sistema de justiça interno do Exército de  Israel é monstruoso: não se pode dizer menos. O comandante que deteve uma mulher  palestina em trabalho de parto e com sangramento, num posto de fronteira,  causando a morte do bebê, recebeu, como pena, duas semanas de detenção. O  comandante que ordenou que um soldado atirasse na perna de um palestino algemado  foi “transferido” – o que significa que esse criminoso de guerra pode continuar  servindo em outra unidade do Exército.
O aumento no número e na gravidade  de incidentes desse tipo prova que está aumentando o poder do fascismo  israelense? À primeira vista, sim, pode-se ter essa impressão.
Mas, se se  pensa melhor, creio que a verdade é o contrário disso.
Os colonos  fanáticos sabem que perderam o apoio da opinião pública em Israel, e que os  cidadãos comuns os vêem como bandidos perigosos. Seus movimentos, expostos pela  televisão, são criticadas, muitas vezes com indignação e horror. A visão do  “Tudo por Israel” não apenas perdeu altitude. Pode-se dizer que já se  esborrachou no chão da realidade. Os zelotes[1] agem como agem porque estão  fracos e frustrados.
Como os nazistas odiavam a República alemã, assim  esses fanáticos estão começando a odiar o Estado de Israel. E têm boas razões.  Estão vendo que não há lugar para eles no consenso nacional que vai ganhando  corpo em torno da idéia de “Dois Estados para dois povos” – seja por razões  negativas, como os medos demográficos que nascem da ocupação; seja quando  prospera por razões positivas: pela esperança de alcançarmos paz e prosperidade,  depois de Israel retirar-se dos Territórios Ocupados.
Prossegue a  discussão sobre as fronteiras, mas a maioria já vê o Muro de Separação como a  fronteira futura. (Como sempre repetimos, desde o início, o muro não foi  construído, de fato, para impedir a aproximação de homens-bomba, como dizem as  autoridades israelenses; foi construído para demarcar a futura fronteira entre  os dois Estados).
O establishment israelense deseja anexar as terras que  ficam entre o muro e a Linha Verde; e está preparado para oferecer terras de  Israel aos palestinenses, em troca. Como os colonos interpretam essa  evidência?
A maioria dos colonos vivem em colônias próximas da Linha  Verde que, por esse conceito, serão anexadas a Israel. Esses colonos, não por  acaso, são colonos ‘não-ideológicos’, que buscam apartamentos baratos e  “qualidade de vida”, em área próxima de Telavive ou Jerusalém. Esses colonos  aceitarão, muito provavelmente, qualquer acordo de paz que os mantenha em  território de Israel.
Os colonos extremistas, os que são motivados por  idéias fascistas-religiosas, vivem em pequenas colônias a leste do muro,  que serão desmanteladas tão logo a paz seja assinada. São pequena minoria, mesmo  entre os colonos, apoiados por uma minoria radical da extrema direita. Aí,  exatamente, é que está vicejando o violento fascismo israelense.
Era uma  vez… mas, sim, já houve tempo em que uma Linha Vermelha corria paralela à Linha  Verde; quando se pensava que o terrorismo religioso-nacionalista feriria  ‘apenas’ os palestinos e não atingiria israelenses. Até o rabino Meir Kahane,  fascista nato, dizia isso.
Essa ilusão desmanchou-se no ar, com o  assassinato de Yitzhak Rabin. Então se viu que o fascismo israelense é igual ao  fascismo clássico, que troveja contra “o inimigo estrangeiro”, mas dirige seu  terrorismo contra “o inimigo interno”.
A bomba de fabricação caseira que  explodiu à porta da casa de Sternhell deve fazer acender todas as luzes  vermelhas, porque se soma ao assassinato de Emil Gruenzweig e às ameaças à vida  de outros conhecidos ativistas da paz.
A batalha decisiva, a batalha pela  sobrevivência de Israel, está entrando em nova fase – muito mais violenta, muito  mais perigosa. Mas mais grave que o perigo que ameaça as pessoas é o perigo que  ameaça toda a sociedade israelense. Sobretudo se não mobilizar todos os seus  recursos – governo, polícia, Serviço de Segurança, lei, tribunais, a mídia e o  sistema educacional – para enfrentar esse perigo.
Não creio que o  fascismo derrotará a sociedade israelense. Creio na força da democracia em  Israel. Mas se eu for encurralado e me perguntarem: “Pode acontecer em Israel?”,  serei obrigado a responder: “Sim, o fascismo pode acontecer em Israel.”
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