O que distingue o homem dos animais? Durkheim poderia confortavelmente responder: “nada”. Este autor, de influências positivistas, chega a afirmar explicitamente que não há distinção entre homens e animais a não ser de grau. Veremos, no entanto, que, apesar de ver o ser humano como um animal entre outros, Durkheim ainda assim lhe confere um lugar elevado em uma hierarquia valorativa. O indivíduo humano é, ainda aqui, valioso, apenas com a diferença de que tal valor decorre de características que lhe são emprestadas pela sociedade, não de características imanentes ao indivíduo.
Na verdade, para Durkheim é a sociedade que é algo valioso. Ela supera os indivíduos. Ela lhes confere aquilo que os torna homens. Sem ela, estes seres não são mais que mamíferos bípedes. Aliás, o correto seria dizer que devido à sociedade os homens chegam a ser mais do que meros mamíferos bípedes. Durkheim valoriza o indivíduo, sua personalidade, sua liberdade, sua maneira de pensar, agir, sentir, porém, vislumbra que é a sociedade que confere ao indivíduo tais características, donde é ela, e não ele, que seria dotada de valor.
Estas crenças valorativas a respeito do ser humano também influenciam a obra de Émile Durkheim. Esse autor abraça o holismo metodológico muito em função de que em sua concepção uma explicação em termos intencionais jamais poderia ser completa. Ele não rejeita a explicação intencional, antes a leva em consideração e a utiliza em vários momentos ao longo de sua obra. Tal forma de explicação não seria, no entanto, suficiente, uma vez que a própria intencionalidade careceria de explicação. Esta explicação seria encontrada na sociedade, enquanto um sistema funcional, com suas necessidades e evolução. A intencionalidade, se explica a ação humana, é explicada pela sociedade.
A sociedade ultrapassa os indivíduos, logo não pode ser explicada apenas com referência a eles. Mas os indivíduos são constituídos por ela. Assim, elementos acerca da natureza humana, como os derivados de pesquisas em psicologia experimental, podem até ser levados em conta por sociólogos, mas não são capazes de explicar a sociedade, que, sendo uma realidade sui generis, deve ser explicada com recurso a fatos sociais.
Contra o Jusnaturalismo
Em “Lições de Sociologia”, Durkheim polemiza com a doutrina do jusnaturalismo em um ponto especialmente relevante para uma antropologia filosófica. Por jusnaturalismo entenda-se aqui qualquer doutrina que afirme que o ser humano é dotado de determinados direitos devido a características que lhe são inerentes ou se encontrem na natureza das coisas, na linguagem ou na razão. Durkheim tem em mente especialmente autores como Rousseau, Kant e Spencer. Em cada um desses autores, mesmo de maneiras diferentes, há deduções de direitos individuais a partir da natureza mesma dos indivíduos.
Durkheim apresenta um argumento empírico contra tais teses. Em primeiro lugar, o autor pretende ter demonstrado que o Estado e o indivíduo têm interesses divergentes. Ora, constata-se que o individualismo, os direitos individuais, aumenta com o decorrer da evolução. O Estado também aumenta em tamanho e importância. Tal situação, segundo Durkheim, não se coaduna com as doutrinas que atribuem ao indivíduo direitos intrínsecos, uma vez que, se tais direitos são dados com o indivíduo, caberia ao Estado apenas evitar que um indivíduo viole o direito de um outro. Assim, os direitos individuais deveriam ser tanto mais respeitados e fazer-se tanto mais presentes quanto menos importante fosse o Estado.
O Estado, no entanto, interfere cada vez mais em cada recanto da vida individual e, ao mesmo tempo, garante e aumenta os direitos individuais. Se é assim, os direitos individuais aumentam na medida em que o Estado interfere mais, e não menos, na vida dos indivíduos. Daí que não possam tais direitos ser inerentes à naturesa destes indivíduos. Enquanto deixados por si não têm direitos, quando atingidos pelo Estado passam a tê-los. Logo, tais direitos devem “advir” do Estado.
A solução para esse problema, segundo Durkheim, é rejeitar a tese segundo a qual os direitos individuais são dados com o indivíduo:
Mas então chegamos a uma antinomia insolúvel? Por um lado, constatamos que o Estado vai se desenvolvendo cada vez mais; por outro, que os direitos do indivíduo, que são vistos como opostos aos direitos do Estado, se desenvolvem paralelamente. Se o órgão governamental assume proporções cada vez mais consideráveis é porque sua função se torna cada vez mais importante, porque os fins que ele persegue, que estão ligados à sua própria atividade, se multiplicam; e no entanto negamos que ele possa perseguir outros fins que não os que interessam ao indivíduo. Ora, estes são vistos, por definição, como pertencentes ao âmbito da atividade individual. Se, como se supõe, os direitos do indivíduo são dados com o indivíduo, o Estado não tem de intervir para constituí-los; eles não dependem do Estado. Mas então, se não dependem dele, se estão fora de sua competência, como os limites dessa competência podem se ampliar constantemente, ao passo que, por outro lado, eles devem conter cada vez menos coisas estranhas ao indivíduo?
O único meio de eliminar a dificuldade é negar o postulado segundo o qual os direitos do indivíduo são dados com o indivíduo, é admitir que a instituição desses direitos é obra do próprio Estado. (Durkheim, 2002: 80)
É interessante que a refutação de Durkheim assuma um caráter empírico. Cabe colocar que as teses que pretende refutar buscam encontrar na natureza humana elementos que fundamentem direitos individuais. Dizer que o homem é um ser naturalmente moral e que portanto deve ser respeitado, ou que é vivo e portanto deve viver, é fazer afirmações acerca da realidade, que, em princípio, podem ser verificadas. É claro que não há como verificar empiricamente sentenças deontológicas. Durkheim, portanto, não está buscando demonstrar que o homem não deva ser respeitado, ou que não deva viver, mas apenas que tais conclusões não decorrem das premissas.
Assim, Durkheim apresenta as seguintes premissas, que são aceitas pelos que ele chama de individualistas: os direitos do homem são dados com o homem e os direitos do Estado são opostos aos direitos do homem. Assim sendo, não seria possível que, ampliando-se os direitos do indivíduo, ampliassem-se os direitos do Estado. Este fato é constatado. Logo as premissas não podem estar corretas.
O homem não é dotado, segundo Durkheim, de direitos por sua própria natureza. Não é intrinsecamente valioso.
O homem não é outra coisa, do ponto de vista físico, que um sistema de células e, do ponto de vista mental, que um sistema de representações: em ambos os aspectos, ele diferencia-se apenas em grau do animal. (Durkheim, 2000: 236)
Individualista
Se, por um lado, Durkheim afirma sem hesitar que o homem é um sistema de células e representações, isso não o impede de atribuir a ele um valor. Durkheim é um “individualista” no sentido de que valoriza positivamente a liberdade individual, liberdade de expressão e de crença, etc. O autor comunga também com muitos dos valores que se costuma associar à “Modernidade”. Durkheim também adere aos ideais que valorizam o indivíduo. A sua singularidade está em que não deriva tais valores de características do indivíduo, mas de características da sociedade, e não desta em abstrato, mas da sociedade moderna.
Em primeiro lugar cumpre esclarecer que o homem, na visão de Durkheim, deve sua humanidade à sociedade:
E, com efeito, o homem só é homem porque vive em sociedade. Retire-se do homem tudo o que é de origem social e não restará mais que um animal, análogo aos outros animais. Foi a sociedade que o elevou tão acima da natureza física, e ela alcançou esse resultado porque a associação, agrupando as forças psíquicas individuais, intensifica-as, leva-as a um grau de energia e de produtividade infinitamente superior ao que poderiam atingir se continuassem isoladas umas das outras. Surge assim uma vida psíquica de novo tipo, infinitamente mais rica, mais variada do que aquela de que o indivíduo solitário poderia ser o palco, e a vida que assim se produz, penetrando o indivíduo que dela participa, transforma-o. (Durkheim, 2002: 84)
Percebe-se aqui que o homem é então algo distinto dos demais animais, e não apenas em grau. O que é propriamente humano não são características biológicas ou físicas, mas características sociais. Um homem não social não seria um homem. O abismo que há entre um homem e um animal é o mesmo que haveria entre um homem e um homem não social. A sociedade não apenas confere uma natureza diferente ao homem, confere uma natureza mais elevada, uma natureza superior.
Em outro lugar Durkheim argumenta que:
Nada vem do nada, e o indivíduo abandonado a si mesmo não poderia elevar-se acima de si mesmo. O que faz com que ele se supere, com que ele tenha ultrapassado a tal ponto o nível da animalidade, é o fato de a vida coletiva repercutir nele, de penetrá-lo; são esses elementos adventícios que lhe fazem uma outra natureza. (Durkheim, 2002: 127)
Esta expressão “elevar-se acima de si mesmo” aparece repetidas vezes na obra do autor. Claro está que não é isenta de juízos valorativos. O indivíduo, elevado acima de sua natureza, não é mais um ser qualquer. É agora um ser de uma natureza distinta, é um ser valioso. O homem já não é um mero animal.
Bem, poderíamos aqui estabelecer uma distinção que considero importante, aquela entre afirmar o valor da natureza humana e constatar a crença no valor da natureza humana. Dizer que o homem é um ser valioso não é o mesmo que dizer que é considerado valioso. Durkheim ao afirmar que a sociedade eleva o homem acima de sua natureza, tanto intelectual como moralmente, poderia ainda admitir que tais características não fazem dele um ser mais ou menos valioso. Poderia mesmo admitir que a sociedade o considera valioso e compele os indivíduos a pensar e agir assim, sem admitir que ele o seja, ou melhor, sem julgar que esta constatação implique na fundamentação de uma determinada moralidade.
Tal não é o caso. Efetivamente Durkheim pretende fundamentar uma moralidade. Esta moralidade é a que valoriza o indivíduo. A diferença entre o pensamento de Durkheim, neste ponto, e o pensamento dos autores que ele chamou individualistas, consiste em que os atributos do indivíduo não lhe são dados naturalmente, mas socialmente, bem como seu valor e seus direitos. Não são atributos imanentes, mas atribuídos pela sociedade.
Fundamentando o individualismo
Da mesma forma com refutou o que chamou de “individualismo” (o jusnaturalismo) com recurso a elementos empíricos, Durkheim pretende fundamentar a moralidade individualista e a democracia empiricamente. O argumento é, em suma, o de que a evolução da sociedade caminha no sentido de uma moralidade individualista, e a forma de governo que mais se adequa a tal moralidade é a democrática, tal como o autor a define.
Tomemos, em princípio, a moralidade individualista, ou seja, em especial, a idéia de que o indivíduo é valioso. Sobre este ponto afirma o autor:
Porém, quanto mais avançamos na história mais vemos as coisas mudarem. Antes perdida no seio da massa social, a personalidade individual se destaca dela. O círculo da vida individual, antes restrito e pouco respeitado, amplia-se e torna-se o objeto eminente do respeito moral. O indivíduo adquire direitos cada vez mais extensos a dispor de si mesmo, das coisas que lhe são atribuídas, a se fazer do mundo as representações que lhe pareçam mais convenientes, a desenvolver livremente sua natureza. (…) O Estado deve voltar-se para revelar sua natureza. Haverá quem diga que esse culto do indivíduo é uma superstição da qual devemos nos desvencilhar. Mas isso é contrariar todos os ensinamentos da história; pois quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Não há lei mais estabelecida. (Durkheim, 2002: 78)
Aqui, Durkheim pretendeu apresentar fatos acerca da realidade. Ao longo do tempo, segundo o autor, o indivíduo foi sendo cada vez mais valorizado. A história mostra, então, que quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Esse fato contestaria a tese segundo a qual o “culto do indivíduo é uma superstição da qual devemos nos desvencilhar”. Ora, a tese segundo a qual com a evolução da sociedade aumenta o valor atribuído à pessoa humana não é incompatível com a outra que estabelece que devemos nos desvencilhar de tal culto à pessoa humana. Do mesmo modo uma tendência de alta da taxa de homicídios não constitui refutação da norma segundo a qual não se deve matar. O fato não nega a norma. A história não refuta valores.
Acerca da democracia, Durkheim a define como a forma de governo em que há uma concentração da consciência coletiva em um determinado órgão, sendo que a abrangência das matérias por ele tratada é máxima, mas também é máxima a comunicação desta consciência coletiva concentrada com a consciência coletiva difusa. Em suma, é um governo laico, que delibera sobre os mais variados assuntos, que expõe sua deliberação à apreciação da coletividade, que recebe de volta como que pareceres das diversas partes da coletividade e os leva em consideração e, por fim, decide com base nestes elementos, acrescidos de sua própria contribuição.
A democracia seria a forma de governo mais adequada ao valor que se atribui à personalidade individual e a mais adequada a enfrentar as transformações por que tem de passar uma sociedade complexa. Além disso, a democracia é para onde tende a evolução da sociedade.
Portanto, não é que há quarenta ou cinqüenta anos a democracia começasse a fluir com sua plena capacidade; sua escalada foi contínua, desde o início da história. (Durkheim, 2002: 125)
A Democracia, entendida como o regime da reflexão, é a direção natural para a qual tende a sociedade. Aqui novamente convém colocar que o fato de que a democracia seja o rumo que as sociedades tomam não constitui fundamento para tal regime. Ou melhor, não o constitui a não ser que se suponha que as coisas devam ser tais como o rumo de sua evolução aponta que serão, ou que as coisas devam ser tais quais são.
Durkheim parece fazer esta suposição. Procurarei mostrar, agora, que Durkheim entende que se algo é, deve ser. Assim também, se a história caminha em determinado sentido, deve fazê-lo.
Um primeiro trecho em que isso aparece de forma explícita é o que segue:
A autonomia de que o indivíduo pode desfrutar não consiste então em se insurgir contra a natureza; uma tal insurreição é absurda, estéril, quer a tentemos contra as forças do mundo material ou contra as do mundo social. Ser autônomo é, para o homem, compreender as necessidades às quais ele deve se dobrar e que ele deve aceitar com conhecimento de causa. Não podemos fazer com que as leis das coisas sejam diferentes do que são; mas nos libertamos delas pensando-as, ou seja, fazendo-as nossas pelo pensamento.
Que se insurgir contra a natureza seja estéril bem pode ser uma afirmação destituída de conteúdo normativo, mas que seja absurdo não. Durkheim afirma nesta passagem que o homem deve compreender as forças às quais deve se dobrar. Com tal afirmação não parece o autor estar se referindo a que a vontade humana seja causalmente condicionada e que a compreensão de tal causalidade não a torne estéril. Está a dizer que não deve o homem insurgir-se contra a natureza, que deve agir como pedem “as leis das coisas”. Como não podemos impedir que as coisas sejam como são, Durkheim conclui que devemos aceitá-las tais como são.
Em outra passagem, que acima comentamos em parte, Durkheim afirma de maneira mais clara este axioma:
quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Não há lei mais bem estabelecida. Por isso qualquer tentativa de assentar as instituições sociais no princípio oposto é irrealizável e só pode ter um sucesso de um dia. Pois não se pode fazer com que as coisas sejam diferentes do que são. Não se pode fazer com que o indivíduo não tenha se tornado o que é, ou seja, um foco autônomo de atividade, um sistema imponente de forças pessoais que não pode ser mais destruída que as forças cósmicas. Já não é possível, a esta altura, transformar nossa atmosfera física, no seio da qual respiramos. (Durkheim, 2002: 79)
Durkheim está argumentando contra os que defendem que devemos nos desvencilhar do culto ao indivíduo. A argumentação caminha no sentido de que é impossível tal desvencilhamento. Ora, Durkheim sabe muito bem que a impossibilidade de se realizar determinado ato não constitui a negação do dever de fazê-lo. Assim diz o autor:
O pensamento verdadeira e propriamente humano não é um dado primitivo, é um produto da história, é um limite ideal do qual nos aproximamos sempre mais, mas que provavelmente nunca chegaremos a atingir. (Durkheim, 2000: 496)
Neste caso Durkheim percebe a impossibilidade de atingir o “pensamento verdadeira e propriamente humano”, no entanto, não conclui que não devamos tentar atingi-lo. Mas, anteriormente, concluiu que não se deveria abrir mão do culto ao indivíduo por ser tal ato impossível. Ocorre que em um dos casos Durkheim fez intervir o pressuposto de que as coisas devem ser como são, e no outro não. Este pressuposto parece estar na base da distinção entre normal e patológico. Tanto assim que a generalidade é um dos atributos essenciais da normalidade. (Durkheim, 1995: 56) A patologia é anormal, não é geral, é efêmera.
Assim, o fundamento da deontologia durkheimiana é a idéia de que não se deve impedir que as coisas sejam como são, e isto porque tal empreendimento é impossível. Por isso muitos o têm como conservador a despeito de suas idéias propriamente políticas.
Elementos de explicação intencional em Durkheim
Tal como se encontram em várias partes da obra de Marx elementos de explicação intencional, o mesmo encontramos em Durkheim, talvez até em uma maior intensidade. Aventarei agora a hipótese de que também em Durkheim o modo como concebe a natureza humana, ou seja, sua antropologia filosófica, interfere na forma de explicação dos fenômenos sociais que almeja alcançar.
Tratando sobre Marx, com uma ousadia que talvez não se justifique, argumentei que como o homem era um ser intrinsecamente bom, especialmente quando em contato com outros homens, seu comportamento não poderia constituir, sem mais, a explicação de uma sociedade ruim. Quanto a Durkheim, a mesma ousadia me leva a pensar que como o homem não tem nada de intrinsecamente valioso em sua própria natureza, não pode servir para explicar uma vida social tão rica em termos morais e cognitivos. Como, no entanto, o homem participa de tal vida social, ele toma para si parte de sua riqueza e se torna, ele mesmo, valioso. Assim, a explicação intencional é sempre levada em conta por Durkheim, mas a própria intencionalidade deve ser explicada por fatores sociais.
Que Durkheim esteja lidando com explicações intencionais não é difícil demostrar. Em “O Suicídio”, obra que marca qualquer estudante de sociologia por buscar mostrar que tal fenômeno é social e não meramente psicológico, Durkheim está lidando com taxas de suicídio, mas sua classificação tem por base fatores intencionais. A classificação dos suicídios em altruístas, egoístas ou anômicos (admitindo-se mesclas em diferentes graus) remete claramente à intencionalidade, lembrando mesmo os tipos ideais weberianos. Enquanto o suicida altruísta se mata porque crê ter o dever de fazê-lo, o egoísta o faz porque tem, digamos assim, o direito de se matar. Isto é intencionalidade. Diz o autor acerca do suicídio egoísta:
A sociedade se opõe, então a que os indivíduos se furtem pela morte aos deveres que têm para com ela. Mas, quando eles se recusam a aceitar essa subordinação como legítima, como poderia ela impor sua supremacia? A sociedade já não tem, então, a autoridade para mantê-los em seu posto, quando eles desejam desertá-lo, e, consciente de sua fraqueza, chega a lhes reconhecer o direito de fazer livremente o que ela não pode mais impedir. Na medida em que se admite que os indivíduos são os senhores de seus destinos, pertence-lhes marcar o seu termo. (Durkheim, 2000b: 259)
O suicídio egoísta é aquele em que, abstraindo as razões imediatas para o ato (como uma briga com a namorada, ou problemas no trabalho) o indivíduo o comete porque pode fazê-lo, crê que sua vida concerne a si e, portanto, pode dela dispor. Tanto Durkheim trata da intencionalidade que transcreveu o seguinte trecho de Lamartine para descrever o suicídio egoísta:
A languidez de todas as coisas à minha volta era uma maravilhosa consonância com minha própria languidez. Ela aumentava, consolando-a. Eu mergulhava nos abismos da tristeza. Mas essa tristeza era viva, bastante cheia de pensamentos, de impressões, de comunicações com o infinito, de claro-escuro em minha alma para que eu não desejasse subtrair-me a ela. Doença do homem, mas doença cujo próprio sentimento é um atrativo em vez de ser uma dor, e em que a morte se assemelha a um voluptuoso desvanecer no infinito. Estava resolvido a doravante entregar-me inteiro a ela, a me seqüestrar de toda sociedade que pudesse distrair-me dela e a me envolver em silêncio, solidão e frieza, no meio do mundo que eu encontraria então; meu isolamento espiritual era um sudário através do qual eu não queria mais ver os homens, mas apenas a natureza e Deus. (Durkheim, 2000b: 359)
Esse trecho colorido de subjetividade é de fato uma ótima descrição do suicídio egoísta. À pergunta: por que o suicídio? Teríamos aí uma resposta eloqüente, que agradaria a qualquer pesquisador que lide com explicações intencionais. De fato tal trecho poderia mesmo ter sido citado por Weber para descrever um tipo ideal de suicídio egoísta. Poderia prolongar este trabalho com exemplos como a descrição do suicida que quer deixar por escrito como é asfixiar-se ou daqueles que se sentam e se deixam morrer de fome. Durkheim explica que tal tipo de suicídio decorre de que os laços que unem o suicida aos demais estão demasiado frouxos. É uma explicação intencional. Ou melhor, seria uma explicação intencional, se Durkheim a considerasse suficiente.
Também em seus trabalhos tardios encontramos explicações intencionais. Segue um último exemplo, quando Durkheim procura explicar as razões que levaram à escolha da imagem emblemática dos grupos totêmicos:
Ora, a matéria da imagem emblemática só podia ser pedida a uma coisa suscetível de ser figurada por um desenho. Por outro lado era preciso que essas coisas fossem daquelas com as quais os homens do clã estavam mais imediata e habitualmente em contato. Os animais preenchiam em mais alto grau essa condição. (…) Ao contrário, o Sol, a Lua e os astros estavam demasiado longe e davam a impressão de pertencer a um outro mundo. (Durkheim, 2000: 244)
Neste último exemplo, a explicação intencional é a única oferecida. Não há qualquer acréscimo de natureza funcional ou sistêmica. Portanto, claro está que Durkheim conhece, utiliza e reconhece o valor da explicação com recurso à intencionalidade. Ocorre, porém que Durkheim é muito mais ambicioso. Quer também explicar a intencionalidade mesma. O indivíduo decorre da sociedade, e não o inverso. Logo é por fatores sociais que se explica a conduta individual, e não por fatores ou intencionalidades individuais que se explica a Sociedade. As correntes suicidógenas egoísticas não nascem por ato de um indivíduo, são fenômenos sociais. As categorias do entendimento mesmo, o espaço, o tempo, o gênero, a causalidade, não são contribuições individuais, não são dados com o homem, são fatos sociais. Assim o pensamento. Assim a intencionalidade.
Aquilo que Durkheim disse acerca do pensamento religioso que tentava compreender o mundo aplica-se também à sua sociologia: “afinal, o que importava era menos o êxito que a ousadia” (Durkheim, 2000: 249).
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